sábado, 10 de março de 2012

Ondas de Pó

Aqui está, finalmente, o tal texto. Se não estou em erro, comecei-o em Setembro ou Outubro, mas com a vida, e depois, pouca inspiração, arrastou-se até hoje. Peço desculpa se houver alguma inconsistência na escrita, mas tende a acontecer quando uma coisa destas se prolonga durante meses. Ainda assim, espero que gostem.

(Imagem de: http://www.csmonitor.com/Environment/Bright-Green/2008/1201/light-pollution-harms-not-just-stargazers.)

Estava deitada com os seus braços cruzados sob a sua cabeça cabeluda como que uma almofada, e uma perna dobrava para cima enquanto a outra descansava ao longo da cama de casal. Os seus vulgares olhos castanhos fitavam na escuridão total com um ar vazio para a paisagem maravilhosa que se erguia orgulhosamente à sua frente através da janela suja que estava totalmente aberta: o prédio seguinte, e por sorte, um bocado de céu alaranjado se esticasse um pouco o pescoço para olhar por baixo das persianas que tapavam metade da vista. Não conseguia sentir nada, nem conseguia pensar. O seu corpo e a sua mente limitavam-se apenas a fazer o que faziam naquele momento - nada. Conseguia ouvir um grilo no jardim selvagem do condomínio, o seu canto alto e repetitivo. Tanto, que ela já quase nem percebia que ele estava ali, de tão habituada que já estava ao seu tom monótono. Quando reparava, surpreendia-se por ainda se conseguir ouvir aquele animal no meio de toda a urbanização e industrialização, mas depois lembrava-se que ele estava lá todas as noites, e então os seus olhos tornavam a voltar ao mesmo ar vazio com que sempre estavam. Nada de novo acontecia, como de costume. Já estava à espera. Ultimamente, era tudo demasiado bom para ser verdade. Até o facto de haver leite para os cereais. Via-se um pacote parecido e da mesma marca no frigorífico, e quando vai a agarrar para meter no pequeno almoço, são, na verdade, natas. Por isso, nada de pequeno almoço. Estava a ser demasiado difícil manter-se em pé hoje em dia, as aulas tinham apenas acabado de começar, e já se sentia deprimida e sem motivação para fazer o que quer que seja. A tristeza cai pesadamente sobre ela, dia após dia. E não encontra nada que a faça parar. Não há música que a faça sentir-se feliz por tempo suficiente, não há quadros que a entretenham por um longo tempo, e não há filmes nem danças que a façam sentir-se entusiasmada. Neste mundo, só há obras que a fazem lembrar a tristeza. Talvez seja falta de companhia, diziam-lhe sempre, talvez precisasse de um amigo, ou de alguém para desabafar. Mas ela não conhecia ninguém que pudesse fazer isso por ela. Nunca ninguém faz nada por ela. Ela vive num mundo preconceituoso, e o pior é que ela vivia lá sozinha, sem conhecer ninguém, nem mesmo a si própria. Há quem lhe chame manias, ou até mesmo busca de atenção, mas ela chama-lhe fracasso. Fracasso ao desenvolver uma personalidade, fracasso ao tentar saber o que quer da vida, fracasso em tentar fazer alguém orgulhoso dela já que não consegue sentir-se orgulhosa de si mesma. Fracasso em tudo. Ela era uma falhada, e nada parecia alguma vez poder mudar isso.

Fez então a derradeira decisão: Se nos próximos cinco anos nada mudasse, ela própria acabaria com tudo.

O primeiro ano passou lentamente, e sem grande novidade. Os dias eram iguais, as caras as mesmas, não mudou grande coisa comparado com os outros anos.

Chegou o segundo ano, idêntico ao primeiro. No terceiro ano, tentou uma táctica diferente ao mudar algo. Saiu mais 
vezes, foi para mais longe, tentou socializar um pouco. Mas não chegou.

Durante o quarto ano, reparou como o tempo passou depressa. Parecia ontem que tinha feito aquela decisão, o que a perturbou vagamente. Não entendia porque é que tanto tempo passou sem que mudasse nada de especial, nada para a fazer mudar de ideias. No entanto, continuou. Ainda falta um ano.

Não queria pensar muito no assunto, continuava a tentar mudar algo, o que quer que fosse, mas chegara o quinto ano. Estava indecisa. Talvez se continuasse por mais uns dias, se calhar algo mudaria. Ela ainda nem tinha decidido como acabar, apenas tinha a ideia na cabeça. Pensou em várias maneiras, claro, mas não decidiu em nenhuma das formas. Continuaria por mais uns tempos até se decidir.

Passaram-se uns dias, depois umas semanas, e uns meses. Quando deu por si,  já se tinha passado meio ano, e ainda não tinha nada que a agarrasse nem fizesse mudar de ideias e sentimentos. Reflectiu durante horas, e reparou como ao longo dos anos, a tristeza se aprofundava e a rotina se mantinha monotonamente igual. Estava cansada. Decidiu fazer umas loucuras antes de partir, e assim o fez, finalmente. Afinal de contas, que mal lhe poderia fazer? Ninguém repararia nela, quanto mais reconhecer. Era um fantasma na sociedade.


Conversou ávidamente com todos os homens do bar, e um deles ofereceu-se para lhe dar boleia. Sentiu-se contente por finalmente andar de mota, algo que sempre quis fazer mas falta de dinheiro para tirar a carta não lhe davam meios para tal, e não conhecia ninguém que tivesse uma.

Achava ela.

A cara dele era familiar, sabia que o tinha visto antes. Mas pensou que talvez ele vivesse nas redondezas, e então deixou a sensação de lado. Sentada na mota, agarrada ao tronco forte do condutor, sentiu a adrenalina subir-lhe e sorriu dentro do capacete. A areia andava à volta dela, não em si. Quando olhava para o lado, via as ondas de pó rodopiarem como que se estivessem a despedir-se. Agarrou-se mais ao tronco forte do condutor, e encostou a cabeça nas suas costas. Sentia que não havia perigo. Ao contrário da maioria dos homens com quem ela falou, este parecia ser mais divertido e bem assente à terra. Não costumava ir ao bar, pelo que disse, mas hoje apeteceu-lhe uma boa cerveja. E a familiaridade que ela tinha com ele dava-lhe a sensação de segurança. Não eram amigos, não de todo. Nem sentia nada de especial por ele. Mas eram conhecidos desconhecidos, e isso chegava para o momento.


Passaram a noite a conversar num jardim. Uma conversa animada e brincalhona, sem pressões nem conflito sério. Foi então que descobriram a razão porque ele lhe era tão familiar. Os dois tinham andado na mesma escola, até mesmo na mesma turma durante um mês antes de ele pedir transferência para outro curso. Surpreendia-lhe o facto de não o ter reconhecido, uma vez que até se cumprimentavam durante uns tempos quando se encontravam nos corredores. Mas o tempo tinha passado, e com ele, a juventude. Ele era um rapaz calado enquanto adolescente, muito tímido, e isso fez com que outros grupos, geralmente numerosos, o vissem como um autêntico fraco. Até quando a madrugada chegou, os dois lembraram velhos amigos e histórias desses tempos, amores e desamores, conhecendo-se cada vez mais e melhor.

Ele vivia feliz noutro país longe dali, junto da sua noiva, que confiava nele, e que ele amava puramente. Odiava esta terra graças ao sofrimento a que tinha sido submetido na juventude. Na verdade, só estava naquela cidade de passagem, e tinha que partir naquela mesma manhã. O mais provável era nunca mais se voltarem ver. Então ele levou-a a casa, e após um longo abraço e um lamentável adeus, foi-se embora, para nunca mais ser visto. Continuou a sua vida, e com ela, passaram-se os meses. Mas quanto mais tempo passava, mais sozinha se encontrava e mais deprimida se sentia. Não importava o quanto tentasse, ela sabia que a vida dela não ia a lado nenhum. Apenas o sabia. Chegou então o momento final.

Deu uns passos em frente na noite. Já não sentia medo, mas o nervosismo corroía-lhe as tripas. Mesmo estando de pé na berma da ponte, directamente acima do rio que se transformava em mar, dando a óbvia intenção de saltar, os carros continuavam a passar por ela a uma velocidade moderada. Nunca se tinha sentido tão sozinha. Mas também nunca se sentiu tão em paz.

Os seus olhos não largaram o horizonte durante horas. Já era de madrugada quando ela tinha saído de casa, aconchegando a carta de suicídio mais perto do seu coração, e estava a aproximar-se o amanhecer. O dia nasceria novamente no mar. Tinha-se passado tanto tempo desde a última vez que vira o sol nascer.

Saboreou a brisa fresca que brincava com a sua cara, o vento que passava firmemente no seu curto cabelo castanho. Cheirou profundamente o odor da água salgada. Ouviu os ténues sons da cidade adormecida. Fitou as luzes em seu redor. Durante um longo tempo, talvez uma hora inteira, esteve em completo silêncio. Desta vez, nem um carro passava. Este momento era totalmente dela e do mundo. E foi aí que o sol se ergueu.

Foi um momento magnífico. As águas abaixo ondulavam suavemente, como se percebessem o que estava prestes a acontecer. Como se estivessem tristes. O céu tinha poucas nuvens, e um leve nevoeiro pairava no ar em seu redor, misturando deliciosamente o laranja do sol com o azul do mar por toda a sua visão. Era maravilhoso.

Suspirou quando os primeiros pássaros acordaram, com o seu leve piar sonolento a dar vida ao dia. Tudo lhe parecia quase mágico. Até sentiu alguma pena em deixar este mundo. Mas sabia que era de curta existência, e quase que como se a estivesse a provar de tal, o barulho de industrialização começou. Começou pelos motores dos carros, e pouco depois, pelas fábricas. No entanto, aquele lindo momento ainda se apresentava diante de si, preparado para o que estava para vir.

Fechou então os olhos. Apreciou novamente o vento à sua volta, o cheiro a mar, e os pequenos sons da natureza. No meio de uma torrente de pensamentos e memórias, lembrou-se do homem do bar e da mota, o que tinha sido colega dela, e esperava que ele estivesse feliz com a sua noiva, pois ele merecia-o. Ao lembrar-se da forma que ele falava sobre a sua vida, ela sentia-se como se estivesse prestes a cometer um crime. Mas para ela, no seu ponto de vista, já não havia outra solução. Se ela não conseguia aproveitar da oportunidade de viver, certamente que outra pessoa o faria. Nunca nada é desperdiçado. E esse era o seu último desejo.

Lembrou-se finalmente da paz, respirou bem fundo, e sentiu-se pronta. Era a última vez que teria um momento assim.

Foi desta forma que ela deixou tudo para trás, e num passo largo e sentido, abraçou a sua nova aventura pelo desconhecido.