Fotografia de Clark Little
É estranho. Muito estranho. Ela não sabe se está a sonhar, ou se está acordada. Talvez o sono a tenha engolido, e está tão absorvida na sua profundidade que nem dá conta de estar a sonhar algo tão vívido. Ou talvez esteja acordada, e tenha vagueado inconscientemente até ali. Ela realmente não conseguia perceber como fora lá parar. Não sabe ao certo onde está, apenas que quando deu por si, estava a tremer levemente de frio. O céu, salpicado de claros pontinhos brancos e uma nuvem cor de rosa aqui e ali, estava repleto de tons de laranja e turquesa que envolviam o horizonte como um fino e longo pedaço de seda, quase infinito, e a brisa dançava em seu redor num subtil abraço de despedida. Era a noite que estava a cair preguiçosamente sobre si. Hoje, o mundo era dela. Sabia-o desde que sentira as gotas gordas de água salgada rebentarem na pele de cetim das suas longas pernas, tão características da frescura da sua juventude. Tinha a noite só para ela.
Olhou à sua volta. Estava sentada entre rochedos, um pouco mais abaixo estava a presença comfortável e calmante da turva imensidão azul. Cada onda chegava-lhe em sintonia com o coração, rebentava com a sua força segura, e recuava tranquilamente, sem pressas. Como era sonso, o mar. O que é que ele pensava que iria alcançar com aquele ar de inocência? Ele, que rouba vidas e destrói lares. Não, ela tinha que sair dali, não ia deixá-lo levar a melhor. Não desta vez.
É então que quando se levanta, aconchegando a fina camisa de linho à sua figura esguia, que nota na sombra de um homem ao seu lado. Vira-se, e olha naqueles olhos azuis tão escuros e belos, tão familiares. Doía-lhe olhar para aquele rosto, para o queixo forte com a sombra de alguma barba, o sorriso meio engraçado de dentes tortos e as covinhas que lhe apareciam nas bochechas firmes. E aquela maldita sobrancelha esquerda irritante, tão subida. Nunca conseguira fazer aquilo, e irritava-lhe infantilmente com uma certa inveja quando via alguém fazê-lo. Especialmente ele, quando o fazia de propósito para a chatear.
A sua respiração ficou-lhe travada nos pulmões, o peito palpitava incontrolavelmente e as suas mãos imploravam por um toque terno no pescoço dele, puxar o seu cabelo gentilmente, sentir a sua textura escorrer por entre os dedos. Ansiava rodear os seus braços num abraço forte e inquebrável, sussurrar-lhe ao ouvido palavras doces e infinitas promessas. Queria tanto estar com ele numa intimidade (bastante cliché) que há tanto lhe fazia falta, numa felicidade ingénua que já parecia não existir.
Mas não pôde deixar de sentir o seu coração cair profundamente, tão pesadamente que nem uma âncora. Sabia agora que estava a sonhar, era impossível estar com este homem na realidade. Infelizmente, ele já não pertencia ao mundo dos vivos, e tudo porque o mar o roubou dela.
Maldito. Maldito mar, malditas ondas, maldita tempestade! Estava tão perto de voltar para ela, tão perto, e chega aquela vaga gigantesca, atirando os homens à imensidão aquática no escuro da noite. E ela viu. Ela viu tudo. De longe, muito longe, lá no cimo do farol, mas viu quando a onda virou tudo ao contrário, viu quando os homens tentaram escapar em pequenos barcos raquíticos sem saberem por onde ir, viu quando as ondas se quebravam e estilhaçavam como cristal ao bater nos rochedos, a exibir os tristes destroços do imponente navio como uma criança contente mostra um desenho seu acabado aos pais. Nem dava para acreditar que era apenas água.
No entanto, ali está ele, a olhá-la. Sempre a olhá-la. A chateá-la com a sobrancelha, sim, mas ela já não conseguia ligar a isso. Dava tudo para poder ver essa sobrancelha ao vivo de novo. Estava a tornar-se num pesadelo estar ali, tão perto dele, mas saber que não lhe podia realmente tocar, ela não se queria iludir. Tentou alcançá-lo, mas quando as pontas dos dedos estavam prestes a afastar a franja dos olhos dele, tudo desapareceu, e ficou sozinha novamente no meio do nada. Agora, só tinha por companhia os sons de decadência e caos. Os sons das ondas brutais a colidirem com as rochas, os gritos dos tripulantes enquanto imploravam por ajuda, o vento agressivo a tentar empurrá-la do farol abaixo e os relâmpagos severos a rasgarem o céu e as nuvens, fazendo-as sangrar uma chuva sufocante com o espesso nevoeiro a levantar-se em seu redor. Mas isto não era real, nem nunca mais seria.
O que era um pesadelo já se tinha tornado realidade naquela noite, e o que era a realidade antes do pesadelo, tornou-se num sonho. E esse sonho tornar-se-ia num pesadelo que iria levá-la à triste realidade ao acordá-la num mar de suores frios e lágrimas salgadas que a lembravam, porque era sempre assim que acordava de madrugada todas as noites, durante um ano e meio: abalada pelos pesadelos. Estava infinitamente presa àquela noite, e não conseguia escapar. Era a loucura que a consumia, levando um bocado de sanidade consigo à medida que o tempo ia passando, porque sabia que ela era fraca e pequena sem ele, que era indefesa. E todos sabem que a loucura não tem limites nem escrúpulos. Aproveita-se de todas as oportunidades para enfraquecer os sãos. A loucura era revoltada, manipulativa. Conseguia reduzir até o homem mais forte a um monte de baba e ranho ao mostrar-lhe o seu lado mais horrendo e cruel. Era tão diferente do amor. Parecem inimigos; um, tira o bom com o mau, o outro, tira o mau com o bom. No entanto, conseguem ser tão parecidos. Ela sempre pensou que a loucura e o amor deviam ser irmãos gémeos separados à nascença, com um deles o típico maléfico, ou então namorados numa relação muito violenta.
Não era saudável ela se torturar com as memórias. Ela achava que tinha culpa, por não ter arranjado o farol a tempo de os salvar. Podia ter apontado o caminho para terra nos que estavam nos barcos raquíticos, mas estava petrificada com a visão, não conseguia tirar os olhos do que se passava.
Nada disso lhe importava agora, queria - Não, ela
precisava - de escapar aos pesadelos antes que fizesse algo estúpido. Precisava de ajuda, precisava mesmo. E rápido.
E este foi o momento culminante daquela fase: Ela precisava de ajuda, e conseguiu admiti-lo a si própria. O primeiro passo bem sucedido, a primeira escolha certa. E conseguiu tudo por si mesma. Foi uma coisa pequena para o que está no exterior, para os que não compreendem o que ela passou (e continuava a passar), mas ela não se deixava enganar. Sabia que era importante aceitar as próprias falhas para poder continuar, para poder melhorar. Os outros que se danem, ela não podia deixar que algo assim acontecesse de novo. A falta de descanso e apetite estavam a destruí-la, já nem se reconhecia ao espelho. Tinha que ir embora dali. Ele não quereria que ela se perdesse assim, muito menos por causa (ou falta) dele.
Tomou então a decisão, talvez até precipitadamente, mas tomou. Ia ao médico no dia seguinte para tratar da sua saúde, e na próxima semana partiria da ilha. Ia para a cidade no continente durante uns tempos, lá bem no meio, longe do mar. Quando se sentisse melhor, voltaria de espírito tranquilo. Afinal, era aqui que tinha toda a sua vida. Mas iria viver do outro lado da ilha, onde as memórias não seriam tão fortes e vívidas. Talvez até numa casa junto à floresta, depois de viajar pelo mundo, sempre quis saber como era realmente viver lá. Ele nunca deixava isso acontecer, sempre quis que ficassem junto ao mar, longe dos animais predadores da floresta (que sinceramente, pareciam mais mito que realidade (até de unicórnios assassinos se falavam, vejam lá!)). Ela tinha que ultrapassá-lo, tinha que viver a sua vida como
ela quer. É jovem, tem tantos anos à sua frente, tanto por ver e descobrir, por conhecer. Não podia desperdiçar nada, só vive uma vez.
Sim. Ela ia viver. Sem ele, infelizmente, mas ia. Vai viver bem e será feliz.
Finalmente derrotará a loucura.